terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Simulacros e Gramatologia



Havia perdido os referenciais naquelas noites. Nada do que havia lido ou perscrutado em toda a curta existência lhe fizera tamanho estrago. As indefinições que faziam parte de sua existência pareciam tornar-lhe ainda mais insignificante do que já era. Os copos pela metade, rasgos de papel, almofadas, artrópodes e a própria hermenêutica não lhe faziam sentido. Tamanha inflexão teórica lhe levara a uma reclusão que já durava dias.
As estruturas da razão não mais lhe apeteciam. Era chegada a hora em que deveria seguir seu destino e causar um estrondo na epistemologia. E possivelmente nos vizinhos também.
O mundo dos simulacros agora se descortinava perante seus olhos. Tudo aparecia como realmente deveria ser. Passou a não enxergar mais as pessoas; ele agora via apenas metáforas esvoaçantes, metonímias loiras e de salto, eufemismos com tatuagens... Quando certo dia uma rosnante onomatopéia urinou em suas calças, teve plena certeza de que Baudrillard tinha mesmo razão.
Passou a viver em um metacotidiano. E também ficou surdo. Não ouvia, pois os sons agora lhe apareciam como textos que pululavam no ar e se dissipavam como bolhas de sabão. Pontos de interrogação às vezes lhe escapavam, embora os de exclamação sempre tentassem aparecer antes mesmo das frases. Os gritos vinham em letras maiúsculas de caixa alta; os sussurros em itálico. Enfim, como já se dissera antes, o mundo humano se lhe revelava em sua mais pura essência. Intertextualidade.
As complicações realmente vieram quando passou a questionar sua própria faculdade de questionar suas faculdades. Não porque achasse que ela fosse falha, mas porque não poderia achar nada. E se não achasse nada, na verdade nem mesmo seria um questionamento e, portanto, nada teria sido questionado. A situação se agudizou e as agonias eram cada vez mais implacáveis. A motricidade foi atrofiada e já não emitia nenhum som. Levantar-se da cama aparecia como uma tentativa vã de legitimar uma suposta lei científica gravitacional, que nunca existira, a não ser como um constructo simbólico afirmado por um pretenso cientificismo etnocêntrico. Parecia debater-se entre o ser, o nada, e os farelos de bolacha em cima da cama.
O estrago que aquelas páginas fizeram foi definitivo. Não sobrara nada. E mesmo o nada parecia mais destituído de sentido que o próprio conceito que lhe constituía. Antes de chegar às últimas páginas da obra, tudo já estava acabado. Nem chegara a morrer, porque na verdade nunca existira, senão como auto-imagem representada metalinguisticamente numa realidade incognoscível. Estava desconstruído. Desta vez, Derrida indubitavelmente havia chegado longe demais.


Homenagem ao pós-modernismo.
Jaisson.
(Out 2007)

Canção do Céu ou a história de um coração universitário


Tão radiante quanto arredio, o garoto pôs seus pés pela primeira vez na rua que o veria crescer. Os poucos metros de comunhão entre a “Astrogildo” e a “Professor Braga” são quase como um espaço litúrgico no centro de Santa Maria: ali as almas se cruzam em ares estudantis, sob a sombra infalível de dois lendários prédios dessa cidade cujo sobrenome é UFSM: a Antiga Reitoria e a Casa do Estudante. É neste acanhado quadrante urbano que o sol no centro do estado racha a pino, o vento norte faz suas costumeiras curvas e é também ali que fica depositado um sopro da alma de cada vivente que resolve cruzar o célebre arco celeste. Mal podia ele imaginar que este diminuto cruzamento de asfalto e pensamentos vaporosos lhe mostraria tantas faces deste mundo do qual quase nada conhecia.
Alguém lhe disse que aquela casa se chamava CEU (ou “Casa do Estudante Universitário”). Impossível não deixar escorrer o trocadilho: não poderia haver desafio maior que morar no Céu. No velho fusca cinzento do pai as malas disputaram espaço com o colchão amarrado e o inseparável violão por quase duzentos quilômetros a fio. Tão logo tudo estivesse descarregado no opaco chão de ladrilhos xadrez do hall, restariam apenas duas certezas perenes: o sono daquela noite seria tão indelével quanto as lágrimas do velho, que precisava voltar pra casa.
Naquele Céu não havia muitos querubins. Mas os maiores amigos que se podia ter estavam ali, e eram tantos e peculiares os sotaques e trejeitos dos que viviam naqueles apartamentos de seis-por-seis! A Casa do Estudante é cosmopolita. Naqueles frios corredores, Beethoven nunca teve maiores pudores em desfilar as notas indomáveis de sua Quinta Sinfonia em dueto com compassos fremindos da voz de Jim Morrison ou no embalo de alguma rancheira amorosa. Heidegger dissecava a condição ontológica do Ser sorvendo goles do seu mate aos domingos. Um alegre “bom dia” para a vizinha e seu pequeno jardim suspenso de begônias! E no fim da noite uns cortejos de violão no oco sabor das entreportas.
Mas voltemos ao nosso herói. As madrugadas, o garoto as dividiu calmamente entre as pilhas de livros, algumas notas desencontradas na guitarra, poesias baratas de bolso e as canções de sexta à noite, da famosa “Boate de DCE”. Na Velha Casa, aprendeu a cozinhar e lavar, abrir tomadas, usar massa corrida; aprendeu na prática as leis da dinâmica e da eletrônica; estudou um pouco de filosofia alemã e de bossa nova e saiu até arriscando alguns passos de forró. Descobriu ali que as mulheres são tão geniosas quanto sublimes; que não se deve fechar totalmente as janelas nas noites de minuano e que o Tempo é mesmo um sinuelo desgovernado a pastar pela noite. Há momentos na Casa do Estudante em que se pode ver que ela é feita não só de areia e tijolos (muito frágeis, por sinal): suas paredes só se mantêm em pé porque têm o dom de guardar intactos os ecos dos gritos de cada geração que por ali passa. São vários tempos que se mesclam e se interpelam diariamente, porque cada canto da Casa é uma espécie de templo. Ela guarda, debaixo das vigas, estórias e histórias, virtudes e prazeres, proezas e dolos. As pinturas e as frases toscamente cunhadas no véu das paredes e muretas são mestras sapientíssimas, a recitar diariamente muitas e essenciais lições. Alguém um dia disse, sobre isso, que a mais pulsante de todas elas continuava sendo o próprio amor...
Malgrado fossem já tempos modernos, às vezes o rapaz ouvia alguém datilografando, ou ao menos pensava que ouvia. Foram várias as conversas com as velhas basculantes do 6º piso, conselheiras anciãs que jamais lhe negaram conselho e de vez em quando até um pôr-do-sol venturoso, pra lhe encher o peito de paz em épocas turbulentas e não o deixar esquecer que ali ninguém deveria, jamais, parar. Aquele Céu de cor desbotada continua sendo um relicário de paixões e medos universitários. Um dos maiores medos – que estudante nunca experimentou tal temor? – era o de ver os sonhos desmoronarem. Talvez isso ajude a entender porque tanta gente temia que a Casa um dia viesse a cair. A cada ano que passa, o vento norte trava batalhas de morte com aqueles alicerces; e dentro de cada quarto, os corações universitários reproduzem essas pelejas, em campos de incertas expectativas sobre o futuro.
Certo dia uma parede perdeu uns rebocos no prelúdio da madrugada. Alguém saiu gritando que tudo estava pra cair. Os gritos histéricos foram a trilha daquela gente pulando escadas às pencas. Alguns choravam de desespero. Outros conjecturavam. Um estudante de filosofia pôs debaixo do braço sua raríssima edição de “Fédon” (traduzido direto do grego) e desceu perplexo. A Casa foi evacuada. Bombeiros faziam medições com os olhos e até um engenheiro apareceu. Seria um sinal de que Deus chegara ao limite de sua paciência e mandara a famigerada tempestade para destruir a Torre de Babel?
O experiente engenheiro não titubeou: “– Foram só uns pedaços de reboco gurizada! Voltem a dormir que essa casa ainda vai ser lar dos filhos de vocês!” Até hoje se duvida que alguém tenha conseguido dormir naquela noite inusitada, do último semestre em que morou ali. Bem no final não faltou alguém pra gritar entusiasmado olhando pro firmamento, como que falando com alguma divindade: “– Isso aqui balança viu, mas não há de cair jamais!”
Levemos ou não em conta essa profecia em forma de berro, é preciso reconhecer: não só a Casa não caiu como ainda está firme e de pé (como a maioria dos sonhos dos que ali se formaram). O garoto (que nem era mais tão garoto assim) saiu dali duplamente graduado. Um diploma de historiador devidamente carimbado e assinado. E outro, leve bosquejo de recordações e peripécias, um diploma de vida registrado com a tinta dos dias na memória. As mesmas malas que lhe trouxeram até ali, depois de meia década voltaram a pisar no tabuleiro do hall. O pai voltou a encostar o carro no meio-fio da “Professor Braga” e desceu. Fitou com um olhar cético o velho prédio e por alguns segundos continuou contemplando-o, como um herege que volta a sussurrar graças diante do altar. Balbuciou duas ou três palavras indecifráveis e abraçou o filho. “– Vamos rapaz, tua mãe tá ali no carro esperando”. E tudo virou um silêncio matreiro, um zunido de vento, e um olhar no retrovisor. E lá no fundo um tipo franzino e sorridente entrava no prédio, uma mochila cheia nas costas e um colchonete desgastado a tiracolo (quem sabe para a primeira noite de mais uma página de vida no Céu).

Jaisson.


Crônica que ficou em 3º lugar na categoria egressos do 4º Concurso de Crônicas “A UFSM na sua história”, do Projeto Volver-UFSM. Prometi publicar aqui quando ela saísse também no livro.


sábado, 6 de dezembro de 2008

Ser eu


Sou a brisa
Que incerta abraça
Voa à beça
A vida caça
Em brasa deserta
Esfumaça.

Sou amargo canto
Em canto esparso
Soluço etnocêntrico
Em verso esperanto
Reencontro
Do concentro
Desencanto.

Sou ócio aceso
Incúria seca
De sossego,
Doce insípido
Cisto em seda
Cego soberbo
Acalento sem medo
Fleuma, sem época.


Jaisson.
Dez. 2008