quarta-feira, 23 de abril de 2008

Fermata

Era uma vez um pontinho
Redondo que ele só
Um polilátero
Que vivia a lua a observar
Desarrumado, sentado nas pedrinhas de estrutura cristalina
Cantando umas cantigas de feira
Inventando umas modinhas
Pra animar seu flerte com aquela bela
Redonda e clara, toda cheia e sem moral...

Um belo dia sua amada inóspita
Resolveu virar sua face tão esférica
E minguou,
Virou uma grande canoa navegando parada no céu
E aproveitou para viver
E dar aos contrapontos do mundo a chance de parar
Para seguirem com seus próprios tormentos.

O pontinho, desiludido, vagou
Embalou-se dos acordes do próprio amargor,
Revirou-se de amor e decidiu que não podia mais esperar.
Abriu sua alma para a amada minguante
E com dez compassos de um chorinho balanceado,
Arrancou suspiros da maldita,
Ela caiu em seus braços e esparramou-se como um carinho de vó,
E dormiu sabendo-se verdadeiramente amada.

Ali todas as regras se revolveram num prólogo ingênuo,
As pautas se remexeram tensas, nada mais do (seu) tempo sabiam
A melodia ficaria pra sempre livre e inquestionável,
Ao sabor de ouvidos apaixonados
Que talvez nunca mais resolvessem tomar de volta,
O resto da canção que os tornou um só.


J.
Abril de 2008.

domingo, 20 de abril de 2008

O Ser hodierno.

Desvenda os nomes gravados neste muro José,
Porque cada um desenhou pequenos recortes dos teus dias
Cada rejeição e utopia,
Cada sensação, ah Sofia!
Fogo caudaloso que te cortou e costurou,
Com frágeis pavios de memória
Terra adentro, pedras desse sertão de outrora
Chão rachado sem jeito, sem alma e nem ilusão
Tudo isso, caro companheiro, é o que te fez homem
Pois só podes viver a reboque dessas migalhas de passado.

Teu chocalho rangeu, estremeceu o peito
Clamando pela incoerência que teu ego só queria fazer acalmar.
E os planos para o desencanto
Ficaram sempre à mercê desse eixo que parecia tão firme
Tão simétrico, exalando ares impávidos e espartanos
Por dezenas de lustros, impiedoso,
Sujeito nunca sujeito a nada.
Uno.

Mas que fazes hoje Aquiles?
Além de ser esse pífio punhado de migalhas e ferrugem
De cacos de si mesmo.
Só o que sobrou,
Do dia em que teu próprio reflexo no espelho
Traiu-te e trincou teu mundo e tua empáfia transcendental,
Deixando-te só um esboço
E mil cacos
Uns de sonhos, outros de desejos, alguns de fome,
Uns de amor, outros de dor, vida, morte e o nada, mas tudo esfarelado.

E agora José?
Irás mesmo querer outros dez mil anos pra tentar juntar tudo novamente?


J.
Abril 2008

Os poemas pertencem ao mundo

Tu que te engraças com ares de quem tem o dom da palavra
Esnobas seus pares porque sabes rimar
Esqueceste do mais fundamental,
Que os poemas que tanto te enchem o ego
Não são teus, nunca foram e nunca se renderão aos teus caprichos
Porque poemas não têm donos, placas, números, ou coleiras
Eles são a única coisa realmente livre nesse mundo
Porque só pertencem ao mundo.

Cada palavra devidamente encaixada,
Cada refrão que se repete,
Não nascem em tua alma, nascem muito longe dela
Na imensidão da discórdia diária da existência
No calor intenso sob teus pés,
Na água densa que chove em tua janela,
Na indiferença de se saber humano.
De tudo isso é que nascem estes teus versos,
Eles nascem soltos e apenas por detalhe,
Mera coincidência,
Resolvem aportar em teus cadernos.

A poesia é caprichosa,
Ela pode te querer eternamente,
Mas pode também te usar como se fosse um capacho
Te fazer suar de deleite,
E te abandonar antes que tu acordes da noite de amor
Sub-repticiamente.

Mas não chores ou derrubes paredes por isso.
Apenas deixe que elas possam te ensinar
Dia após dia, lua após lua,
Que és tão eterno como um dente de leão no meio da tempestade,
Que passarás tão rápido que ninguém nem mesmo ouvirá dizer
De ti.
Porém se algum dia tiveres tido a chance de acolher a alguns versos,
Descanse em paz, porque eles sim serão eternos
Continuarão sempre sendo a grande essência do mundo
Todo o mundo,
E em todo mundo.
E terás sido eternizado pela ingênua vontade de poetizar.



J.
Abril de 2008.

Qualquer canto

Tenho mil frases engatilhadas no fundo dos bolsos
Remexidas sim, carcomidas do tempo
Umas densas e robustas, outras enferrujadas
E algumas poucas ainda bem afiadas
Pra cortar meu próprio pescoço
No acaso de um incêndio da alma.

Todos estão dançando, e a seda leve do seu vestido
Espuma feito mar gelado
Congelando naquela porção de segundos
A dor que em muitos anos me fiz erguer,
Ferro a ferro, marcando nas costas
A sina de querer o que elas escondem atrás das pupilas.

Mas bobo eu danço, repico, suspiro
Trago a vida nas pontas dos pés, marcando bem o passo
Pra não esquecer que esse chão crasso
Está embaixo de mim, observando meu andar
Querendo controlar meus pontos-de-fuga
E me deixar menor que o verso que somente diz
Só.

Em qualquer canto acho paragem
Pra fazer ferver até o ar,
Cantos sujos e traiçoeiros,
Cantos leigos e bem aprumados
Longe daqueles olhos que parecem um dueto de harpas
Perto daquele coração que não bate, solfeja
Qualquer canto sei fazer,
Em qualquer canto sei viver.


J.
Mar 2008.